sábado, 31 de janeiro de 2009

Lacrimosa



























“Lamparina”, obra de Vandeberg Medeiros






Fim do mundo é quando se perde a capacidade de sonhar e de ter esperança.
Nana Pereira




A seca era uma eterna ameaça na vida de Américo, um sertanejo calado , ensimesmado e cético.
Quando era criança, tinha esperança e sonho de que algum dia teria uma vida melhor, longe daquele lugar esquecido por Deus.
Costumava ir à igreja aos domingos com a mãe e os irmãos e lá ajoelhavam-se aos pés de uma imagem. Ficava imaginando como uma imagem atenderia seus pedidos .
Américo tinha talento com esculturas, era notável sua habilidade como artista. A madeira sem forma transformava-se em verdadeira obra de arte em suas mãos.
Gostavade esculpir ouvindo o único disco que possuía, havia ganhado do mágico de um circo que apareceu na cidade quando ainda era bem jovem.
O mágico ouvia Mozart enquanto esperava a hora de entrar em cena e Américo ficou hipnotizado com a Lacrimosa .
Vendo o encantamento que Mozart produziu no menino, o ilusionista deixou-lhe o disco e a pequena vitrola quando o circo partiu.
Aos poucos foi ficando conhecido por todos e suas esculturas faziam imenso sucesso com os turistas em dia de romaria.
E foi assim por longos anos, até que a fome e a seca lhe tiraram toda a família.
Há muito que não sentia vontade de viver, seu sonho de trabalhar na cidade grande já era coisa do passado.
Suas esculturas já não despertavam o interesse dos poucos turistas que apareciam na cidade em época de romaria.
Estava cansado de ver folhas secas, fontes e rios sem água , de ver as pessoas elevarem seus olhos para o céu imensamente azul , sem nuvens, rezando pedindo chuvas.
Era véspera de Natal , a terra árida , o gado esquelético arrancava o último resquício de vegetação do pasto .
A janela do casebre estava aberta quando a chuva começou naquele fim de tarde.
No início eram apenas uns pingos tímidos que rapidamente eram absorvidos pela terra sedenta, mas foi aumentando, acompanhada por raios que cortavam o céu impiedosamente.
Escureceu repentinamente e logo o homem acendeu uma lamparina que estava em cima de um armário rústico bem ao lado da mesa da cozinha.
Passaria mais uma noite de Natal sozinho, tomando uma sopa rala com pedaços de pão e finalizaria sua refeição com um bom naco de rapadura.
Sentiu-se mais alegre, pois quando a chuva cai enche os açudes ,a caatinga reverdece. as flores surgem e a vegetação rasteira cobre o chão.
Acordaria cedo para observar o capim verde depois da tempestade, ouviria o canto da passarada pela manhã.
A partir das cinco da tarde o céu ficou 'cavernoso', as nuvens escuras e densas pareciam verdadeiros monstros, trovoadas e relâmpagos tomaram conta do céu.
Lamentou não poder ouvir Mozart naquela noite por não haver energia em toda a cidade.
Jamais havia presenciado uma manifestação da natureza tão violenta e pela primeira vez , teve medo de ir lá fora para fechar o portão.
Numa fração de segundo, um raio derrubou uma árvore e abriu um buraco no chão.
O telhado da casa vizinha foi arrancado pelos ventos e atingiu em cheio uma vaca magricela que estava perto da cerca.
Começou a culpar em pensamento toda aquela gente que rezava sem parar pedindo chuva.
Parecia o fim do mundo!
Aterrorizado, Américo tentou fechar rapidamente a janela, mas o raio foi mais rápido e o atingiu em cheio.Foi atirado a alguns metros dedistância e caiu desfalecido.
Choveu a noite toda, e pela manhã somente o vira-lata da casa que havia se escondido debaixo da cama, sobreviveu àquela noite aterrorizante.
O pobre animal não teve a quem pedir ajuda, não sobrou viva alma na cidade.
Ao longe, como se ecoasse do céu , podia-se ouvir a Lacrimosa de Mozart.

Nana Pereira



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